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A família e a sociedade: Aa Organizações Internacionais e a Defesa da Família

Professora Mary Ann Glendon
Faculdade de Direito da Universidade de Harvard
Presidente da Delegação da Santa Sé na Conferência de Pequim sobre a Mulher

INTRODUÇÃO

Quanto mais refletimos sobre o tópico "organizações internacionais e a defesa da família", mais perplexidades parecem acumular-se numa única palavrinha "e". Que ligações há, ou deveria haver, entre os mais antigos agrupamentos sociais e enormes organizações modernas que são tão distantes da vida diária ? A Declaração Universal dos Direitos Humanos das ONU proclama que a família merece a proteção da sociedade e do Estado. Mas não há qualquer evidência no pano de fundo histórico da Declaração de que os seus redatores esperavam que a própria ONU desempenhasse um papel relevante na proteção da família -exceto naquilo de que as famílias poderiam beneficiar-se das atividades humanitárias de agências tais como a Organização Mundial da Saúde e o Fundo das ONU para a Infância. Agora que as ONU e suas agências especializadas tornaram-se burocracias em expansão, simbioticamente entrelaçadas com grandes associações internacionais de lobby, ainda não está nada claro como instituições desse nível podem melhor atender às famílias. De fato, as atuais atividades de muitas organizações internacionais frequentemente levam-nos a pensar se a família precisa ser defendida por elas ou protegida contra elas !

O que está fora de discussão é que, no mundo de hoje, cada vez mais famílias estão sendo afetadas, para o bem ou para o mal, pelas operações de vários tipos de agentes internacionais remotos -desde multinacionais até órgãos supranacionais (mundiais como a ONU e o Banco Mundial, ou regionais como a Organização dos Estados Americanos e a União Européia), sem falar da vasta gama de organizações não governamentais (um termo que inclui grupos tão diferentes na sua aproximação à família como a Federação Internacional de Planejamento Familiar e a Igreja Católica).

Os efeitos das organizações internacionais sobre as famílias são às vezes diretos e intencionais -como acontece com os diversos serviços prestados pela Igreja através de suas 300.000 organizações educacionais, de saúde e ajuda, servindo principalmente as famílias mais pobres no mundo. Frequentemente, entretanto, a vida da família é eventualmente afetada por atividades multinacionais dirigidas a outros fins -como quando uma companhia transfere suas operações, criando empregos em um país e destruindo-os em outro. Quando organizações de controle de população pretendem atuar sobre a família, tipicamente agem de modo indireto, buscando influenciar agências nacionais e internacionais ou grupos privados de serviço social que estão em contato direto com famílias. A minúscula conjunção "e" no meu título, portanto, cobre uma rede de relacionamentos extremamente complexa, alguns benéficos às famílias, alguns danosos, e alguns cujos efeitos são mistos, ou difíceis de discernir.

O que mais gostaríamos de saber sobre tudo isso, é claro, é como ampliar os benefícios e ao mesmo tempo reduzir os danos? No momento, ainda é muito limitado o nosso conhecimento sobre como todas essas organizações internacionais realmente afetam a vida da família. Portanto, o que eu gostaria de focalizar hoje são as atividades relativas à família de um único grupo de organizações: a ONU e suas afiliadas. Especificamente, desejo chamar atenção para uma tendência surpreendente que está tomando vulto enquanto se aproxima o 50o aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem das ONU. Essa transformação é nada menos do que um multifacetado assalto a diversos princípios fundamentais consagrados na Declaração, inclusive a afirmação de que a família é a unidade social básica, e que ela merece proteção. Embora estes ataques tragam as bandeiras de vários movimentos de liberação, sugerirei que eles também representam propostas para formas de controle social sem precedentes. Finalmente, oferecerei algumas sugestões baseadas no ensinamento social católico sobre como podemos reconhecer e combater essas tentativas de voltar o projeto dos direitos humanos contra a família.

I. A VISÃO DA DECLARAÇÃO DE 1948:

A FAMÍLIA ENQUANTO OBJETO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

A primeira manifestação importante de interesse pela família por uma organização internacional ocorreu em 1948 quando foi emitida a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem em Bogotá, Colômbia. Esse documento notável foi uma das principais influências nas disposições relativas à família da Declaração Universal dos Direitos do Homem das ONU, que foi aprovada em Paris, mais tarde no mesmo ano. Lendo hoje esses dois documentos, não se pode deixar de notar a intensa presença das referências à família. Ambas as declarações destacam que a família é a unidade fundamental da sociedade; salientam que todos têm o direito de casar-se e estabelecer família; que o lar é inviolável; que o trabalhador tem direito a um padrão de vida aceitável para si próprio e sua família; e que a família em geral, e a maternidade e a infância em particular, são merecedoras da proteção da sociedade e do Estado. A Declaração da ONU dispõe, adicionalmente, sobre a igualdade dos esposos, e sobre o direito dos pais de dirigir e escolher a formação dos seus filhos.

Vale à pena refletir sobre por que os redatores desses documentos de direitos humanos do após-guerra decidiram incluir a família como objeto de proteção. Cartas mais antigas, como o "Bill of Rights" americano e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão francesa, não mencionavam absolutamente o assunto. A explicação parece ser que os redatores das declarações de pós-guerra usaram, até certo ponto, constituições nacionais como modelos. No que concerne às famílias, há grandes semelhanças no modo como o tema é abordado nas declarações e nas várias constituições de países da Europa continental e América Latina.

Mas isso nos leva precisamente a uma pergunta anterior. Por que esses países acrescentaram a proteção à família às suas listas de direitos políticos e civis tradicionais? Essa transformação pode ser atribuída primeiramente à influência dos partidos Sociais Cristãos e Democratas Cristãos, cujas políticas sobre família por sua vez foram inspiradas pelas encíclicas sociais da Igreja Católica. Embora ninguém tenha chamado atenção para isso na ocasião, um conjunto comum de idéias passou assim dos ensinamentos sociais cristãos, por via da política normal, para a lei nacional, e eventualmente encontrou seu caminho até as Declarações de Bogotá e da ONU. A recepção dessas idéias no processo de redação na ONU foi possivelmente facilitada pelo fato de católicos proeminentes, particularmente o filósofo Jacques Maritain e o diplomata libanês Charles Malik, estarem entre os principais arquitetos do projeto de direitos humanos da ONU.

Outra importante ligação entre as Declarações de 1948 e certas constituições nacionais reside na maneira como tratam da família. As duas declarações internacionais pertencem, em forma e em espírito, a um conjunto de instrumentos relativos aos direitos da pós-guerra que não são, filosoficamente, nem libertários nem coletivistas. São baseados antes num conjunto comum de afirmações sobre o homem e a sociedade que poderiam ser chamadas de dignitaristas ou personalistas. As declarações de Bogotá e da ONU indicam numa linguagem quase idêntica que todos os homens e mulheres nascem livres e iguais em dignidade e direitos; que o ser humano é dotado de razão e consciência, e que todos devem agir entre si num espírito de fraternidade. Ambos os documentos tratam o portador de direitos individuais, não como mônade auto-suficiente, mas como pessoa inserida em relacionamentos comunitários e familiares. A declaração da ONU, por exemplo, indica que cada um tem deveres para com a "comunidade, único lugar onde é possível o desenvolvimento livre e completo da própria personalidade".

Quanto ao problema que nos envolve hoje, é interessante notar que a história das declarações de 1948 silencia sobre como suas considerações relativas à família deveriam ser levadas a efeito. Tudo indica que os redatores consideravam a proteção da família como uma tarefa que devia ser cumprida por instituições mais próximas das próprias famílias. O princípio de subsidiariedade parece implícito no Artigo 16 da Declaração da ONU, que estabelece: "A família ... merece a proteção da sociedade [bem como] do Estado". Para além de afirmar um pequeno núcleo de princípios fundamentais que as instituições públicas e privadas estariam chamadas a observar, o envolvimento da ONU, em seus primeiros anos, com as famílias ficou basicamente limitado a prover assistência humanitária.

Entretanto, com o passar do tempo, a ONU tornou-se uma burocracia complexa, empregando milhares de funcionários internacionais. Suas agências especializadas multiplicaram-se e estenderam seus alcances. Alguns dos grupos mais novos da ONU, como o Fundo para a População e o Comitê para a Situação da Mulher, pretenderam gerenciar a família mais do que assisti-la. Conforme a burocracia da ONU cresceu e expandiu-se, atraiu grupos de interesse desejosos de influenciar suas atividades -criando relações estreitas de trabalho com esses grupos-. Infelizmente, alguns desses grupos internacionais de lobby desejavam proteger a família tanto quanto lobos desejariam proteger cordeiros. O assalto à família começou assim nos bastidores, muito antes de vir a público.

II. O ASSALTO À FAMÍLIA: A FAMÍLIA ENQUANTO OBSTÁCULO

Para compreender porque e como o princípio da proteção à família passou a ser atacado na ONU, é conveniente considerar uma série de eventos importantes que aconteceram em 1995. No começo desse ano, o Secretariado da ONU para o Ano Internacional da Família publicou um folheto dizendo que : "O princípio básico da organização social são os direitos humanos dos indivíduos, que foram estabelecidos em instrumentos internacionais dos direitos humanos".

Essa idéia parece bastante inocente, mas somente até quando se considera o modo como ela se encaixa na Declaração de 1948, que estabelece que a família é a unidade básica da sociedade. O Secretariado da ONU previu essa pergunta. É verdade, admitiram eles, que "vários documentos sobre direitos humanos" referem-se à família como a unidade social básica, garantindo a sua proteção e assistência, mas "o poder da família é e deve ser limitado pelos direitos humanos básicos dos seus membros individuais. A proteção e assistência dispensadas à família devem salvaguardar esses direitos".

Ninguém pode razoavelmente colocar objeções a essa proposição se ela apenas significa que não há direitos que sejam ilimitados, mesmo aqueles relativos à família. Mas, junto com outras apreciações na ONU, particularmente aquela que erosionava sutilmente a autoridade moral dos pais na Convenção de 1989 sobre os Direitos da Criança, a orientação de 1995 parecia fazer parte de um esforço deliberado para colocar os direitos individuais em oposição às relações familiares, para inserir o Estado entre as crianças e os pais, e para minar o status da família como objeto de proteção dos direitos humanos. Essa interpretação ganhou plausibilidade em novembro de 1995, quando o Comitê da ONU sobre os Direitos da Criança atacou ferozmente a Santa Sé por suas reservas quanto a esses aspectos da Convenção dos Direitos da Criança. Considerando que todos esses documentos foram publicados pela própria ONU, acontecia que a raposa estava no galinheiro.

Todas as dúvidas relativas a essa avaliação foram eliminadas pela Conferência da ONU sobre a Mulher que ocorreu em Pequim em setembro daquele ano. Quando li pela primeira vez o rascunho do documento da conferência preparado pelo Comitê da ONU sobre a Situação da Mulher, mal pude acreditar no que estava vendo. Como tinha sido possível que o programa de ação proposto para a conferência da mulher praticamente não mencionasse o matrimônio, a maternidade, ou a vida em família em lugar algum de suas 149 páginas? E que quando o matrimônio e a vida em família -e até a religião- eram mencionados, apresentavam-se basicamente a partir de um enfoque negativo -como fontes de opressão ou obstáculos ao progresso da mulher? A explicação é que o Comitê da ONU sobre a Situação da Mulher havia se tornado em grande parte ferramenta de grupos de interesses particulares que promoviam um tipo de feminismo já ultrapassado nos próprios países onde se originara. O rascunho de Pequim repetiu assim muitos dos desgastados "clichés" do feminismo de 1970 -um feminismo que havia alienado a grande maioria das mulheres, através de sua desatenção para os problemas da vida real no trabalho e na família, mediante a sua hostilidade aos homens e sua infeliz indiferença quanto ao bem estar das crianças.

Nas negociações prévias à conferência, esses ataques feministas da velha guarda contra a família foram combinados com esforços para promover uma noção mais recente: a idéia de que a família e a identidade sexual são apenas categorias arbitrárias, construídas socialmente, e infinitamente maleáveis. Na própria Conferência de Pequim, uma coalizão liderada pela União Européia, continuou esse esforço duplo para "desconstruir" a família e remover qualquer referência positiva ao matrimônio, à maternidade, à família, aos direitos dos pais e à religião.

Aquelas delegadas pareciam desconhecer que a linguagem que tentavam remover dos documentos de Pequim são centrais na maioria de suas próprias constituições nacionais! Foi um panorama triste ver mulheres da França, Irlanda, Itália, Alemanha e Espanha tripudiando sobre os direitos humanos que foram ganhos pelos sacrifícios de seus próprios pais e mães! E mais triste ainda ver delegadas de muitos países em desenvolvimento permanecerem em silêncio enquanto matérias de interesse vital para seus próprios concidadãos eram subordinadas às agendas dos grupos de interesse do primeiro mundo.

Um estranho a essas controvérsias ficaria imaginando por que alguém poderia desejar prejudicar o princípio da proteção à família, justamente numa época em que as famílias estão submetidas a tensões excepcionais em todas as partes do mundo. As respostas padronizadas que se escutam a esta questão são montadas em termos de liberdade individual, igualdade entre os sexos e compaixão para com as vítimas de abuso marital e infantil. Ouvimos que não se pode permitir que a família se interponha no caminho dos direitos das mulheres e das crianças. E que, de qualquer forma, a família foi definida tão rigidamente que deu injusta preferência ao casamento heterossexual, em detrimento da co-habitação sem matrimônio ou das uniões homossexuais.

Mas acredito que seria um engano ver estes assaltos ao princípio da proteção à família meramente como esforços mal dirigidos para promover a liberdade e a igualdade. Eles são também ligados ao poder e aos interesses, embora seja difícil dizer até que ponto. Muito da liderança e do apoio financeiro para essas iniciativas provêm de pessoas que estão interessadas não nos direitos das mulheres, ou das crianças, ou dos homossexuais, mas na preservação dos próprios privilégios. Procuram não a liberação geral, mas o controle social nas mãos deles.

Seus motivos menos óbvios podem ser vislumbrados nos estranhos direitos novos que propõem -direitos que frequentemente se tornam facas de dois gumes, "direito para mim, dever para você"-. Os chamados "direitos reprodutivos", por exemplo, podem representar autonomia para algumas mulheres, mas também constituem uma cobertura conveniente para esforços de controle sobre o tamanho das famílias pobres por quaisquer meios. O "direito de morrer" proposto pode satisfazer os desejos de algumas pessoas abastadas, de se sentirem "no controle" até o fim, mas não se tenha dúvida de que pressagia o dever de morrer para aqueles que estão doentes, abandonados, e incapazes de pagar pelos cuidados médicos. Quanto aos "direitos sexuais", não parece fantacioso vê-los como versão moderna do "pão e circo", uma oferta de liberdade sexual ilimitada como distração para a perda da genuína liberdade e negação da justiça econômica.

Os propósitos mais indesejáveis dos promotores das iniciativas internacionais anti-família podem ser percebidos no triângulo de ferro de exclusão que estão montando em seus próprios países natais: estão excluindo a vida nova pelo aborto e esterilização; trancando a porta contra os estrangeiros através de políticas restritivas de imigração; e voltando as costas aos pobres através de cortes nos programas de assistência à família. No que tange ao auxílio externo, darão milhões para "serviços reprodutivos", mas tostões para nutrição materna e infantil, água pura, ou cuidados primários com a saúde. Como os fariseus no Evangelhos segundo Mateus (23), "eles preparam fardos pesados para os ombros dos outros homens, mas não movem um dedo para ajudá-los". Quando olham para as crianças dos pobres, vêm somente uma ameaça ao meio ambiente, um presságio de agitação social, e uma ameaça ao seu próprio nível de consumismo. A principal fonte de problemas do mundo, a seu ver, é a superpopulação, e a sua principal solução é eliminar os pobres.

É esta agenda vergonhosa que liga silenciosamente o movimento do direito ao aborto com os movimentos anti-imigração nos países desenvolvidos e com certos segmentos dos movimentos ambientalistas. É essa agenda que se esconde atrás das saias dos movimentos femininos, mas não tem qualquer aprecio pelas mulheres. É essa agenda que conseguiu apoio em um número grande demais de agências da ONU, e insinuou-se na política externa de um número excessivo de países desenvolvidos. É essa agenda que demasiados delegados trouxeram para as recentes conferências da ONU.

Num sentido, os atuais ataques à família representam uma nova versão de uma estória que é tão velha quanto a própria política. Os grupos que desejam minar a ordem estabelecida, desde a Revolução francesa aos marxistas do século XX, tipicamente atacaram as famílias, que sustentam os valores da velha ordem. E os tiranos sempre souberam que quanto mais os indivíduos forem desligados das famílias e de outros grupos mediadores, tanto mais facilmente poderão ser subjugados. O movimento para "desconstruir" a família e legitimar estilos de vida alternativos tem assim implicações sobre a liberdade humana muito diferentes das imaginadas pelas feministas e ativistas homossexuais, suficientemente inocentes para acreditar que estariam melhor sem a família.

Entretanto, o que torna a nossa situação atual historicamente nova é que o ataque à família é difuso. Não pode ser identificado com uma nação em particular, ou uma região, ou uma única ideologia. Suas diversas manifestações têm pouco em comum -fora a promoção dos interesses de uma classe burocrática-gerencial-terapêutica animada quase exclusivamente pelo desejo de consolidar a prosperidade sem precedentes que teve na segunda metade do século XX. Como colocou recentemente um administrador do Programa de Desenvolvimento da ONU: "Uma elite global emergente, basicamente urbana e interligada de diversos modos, possui grande poder e riqueza, enquanto mais da metade da humanidade esta abandonada"

Essa nova classe é realmente internacional. Seus membros -os operários do conhecimento, muito móveis, semi-educados, que povoam agências do governo, empresas, universidades, profissões, meios de comunicação de massa e agências de serviço social de toda nação- cada vez têm mais em comum entre si do que com os pobres de suas próprias sociedades. De fato o Relatório sobre o Desenvolvimento Humano da ONU de 1996, indica que esta disparidade cresce cada vez mais ao ponto de que os aquinhoados e os pobres vivem cada vez mais em mundos separados.

O mundo nunca viu antes nada parecido com esta força amorfa, não-estatal, que pretende o controle social a partir de uma classe que procura manter, não exercer, a sua posição. Seu movimento não tem cabeça, mas tem muitos braços que se movem mais ou menos na mesma direção. Essa direção comum nasce menos de conspiração do que de um paralelismo inconsciente. Não são propriamente contra a família, mas determinados a não deixar que a família, a religião ou qualquer outra instituição se coloque no caminho daquilo que desejam.

É fácil ver porque grupos de interesse da nova classe, bem financiados, acorrem às organizações internacionais como a ONU e a Corte Européia para os Direitos Humanos. Em seus países de origem, desdenham os processos políticos normais, que iriam expor suas agendas ao julgamento de seus concidadãos. Antes, procuram influenciar agências administrativas, ou obter sentenças inapeláveis de cortes constitucionais não eleitas. Portanto, não deve gerar surpresa que tenham assumido, rapidamente, novas oportunidades para operarem longe da observação pública e da responsabilidade democrática. Organizações como a Federação Internacional para o Planejamento Familiar (IPPF) têm feito todos os esforços para transformar as conferências da ONU em praças de fabricação "off-shore" para fazer com que a agenda do controle populacional se torne um "padrão internacional", que então poderia ser usado para influenciar não só as agências internacionais, mas também políticas locais e programas de ajuda externa. Desse modo, uma agenda controversa pode afetar as vidas de milhões de pessoas, sem jamais ter sido submetida à prova das urnas.

Em resumo, os anos entre 1948 e 1995 assistiram ao crescimento de diversos movimentos que visavam tratar a família (e a religião) como obstáculos aos direitos humanos, em vez de objeto da proteção dos direitos humanos. Ao final de 1995, parecia que os princípios a favor da família da Declaração Universal de 1948, para além de seu reconhecimento, corriam sério perigo de ser destorcidos ou suprimidos. Isso nos traz a seguinte questão:

 

III. O QUE FAZER ?

Muitos homens e mulheres de boa vontade, desgostosos com esses desenvolvimentos e desencorajados em geral pela incapacidade da ONU para cumprir sua promessa inicial, acreditam que os grupos pro-família não deveriam ter mais nada a ver com a ONU. Mas há várias razões teológicas e de prudência pelas quais essa opção é problemática para os católicos.

Em primeiro lugar, a Cristandade Católica exige que sejamos ativos no mundo. Somos chamados, cada um com seus dons diferentes, a ser o sal da terra, o fermento do pão social, trabalhadores na vinha para a vinda do reino.

Em segundo lugar, tal como a Igreja já reconheceu muitas vezes, a ONU, apesar dos seus defeitos, desperdícios e fracassos, tem feito muito bem, especialmente nos países pobres, e oferece muita esperança num mundo onde as nações enfrentam muitos desafios que atravessam as fronteiras nacionais. Na Familiaris Consortio, o Santo Padre disse às famílias que o papel social e político da família foi "alargado de um modo inteiramente novo" por causa da "dimensão mundial de vários problemas sociais". Esse papel, disse, envolve agora "cooperação para uma nova ordem internacional", participando "no crescimento autenticamente humano da sociedade e das suas instituições, quer mantendo de vários modos associações que especificamente se dedicam aos problemas de ordem internacional".

Em terceiro lugar, tal como se evidenciou na atividade da Santa Sé na ONU, mesmo umas poucas vozes podem fazer diferença, quando falam a verdade e chamam o bem e o mal pelo nome. Muito da melhor linguagem sobre justiça social em documentos recentes da ONU está lá porque a Santa Sé a propôs ou a defendeu. Graças à Santa Sé, a ONU continua comprometida com o princípio de que o aborto nunca deverá ser proposto como meio de controle da natalidade. Mesmo em Pequim, onde era uma minoria pequena, a Santa Sé foi capaz de salvar artigos sobre a proteção à família pondo-os em destaque. Quando a União Européia lutou contra todas as referências positivas à família, à religião e à autoridade dos pais, enviamos uma nota de imprensa a todos os maiores jornais europeus perguntando por que os representantes da Europa estavam tomando posições contrárias às suas próprias constituições e às políticas dos seus governos relativas à família. Perguntamos se esses delegados representavam realmente a política oficial ou a opinião pública de seus países. Em 24 horas, começaram a ser levantadas questões nos Parlamentos europeus sobre o que estavam fazendo realmente seus delegados em Pequim. Antes de passar mais um dia, os delegados europeus recuaram de suas posições e os textos contestados foram salvos.

No fim das conferência de Pequim, muita gente boa e religiosa ainda considerava que o documento da conferência era tão cheio de defeitos que a Santa Sé deveria rejeitá-lo inteiramente. Pediram que nossa delegação se retirasse da conferência. Mas o Papa João Paulo II instruiu-nos a não tomar o caminho da retirada. Falando desde o próprio núcleo da tradição teológica católica, disse: "Aceitem o que é bom no documento, e denunciem vigorosamente o que é falso ou pernicioso".

O tempo já demonstrou a sabedoria dessa orientação. A Conferência do Habitat de Istanbul, realizada um ano depois de Pequim, presenciou uma derrota fragorosa da coalizão anti-família. Como um repórter colocou: "Apesar de muita pressão, golpes e chantagem aberta, os países em desenvolvimento recusaram-se a curvar-se à pressão ocidental favorável à 'saúde reprodutiva' e à definição ambígua da 'família'. Em vez disso, os representantes do G-77 recolheram votos para: reafirmar a importância dos direitos dos pais; garantir o respeito aos valores religiosos e éticos dos Estados membros; reconhecer que a família (e não a palavra-código 'famílias') é a unidade básica da sociedade; e cancelar todas as referências à 'saúde reprodutiva' salvo uma cujo fraseado impedia que fosse usada para impor o aborto no mundo em desenvolvimento".

Até mesmo o Secretariado da ONU para o Ano da Família parece ter experimentado uma mudança no coração, ou pelo menos nas aparências. Em 1997 publicou um relatório de tom muito diferente do folheto de 1995, que citei anteriormente. Em seu sumário oficial de todas as provisões relativas à família das últimas conferências da ONU, o Secretariado destaca principalmente as provisões que sobreviveram devido aos esforços da Santa Sé! .

Parece indiscutível a conclusão que a retirada da Santa Sé da ONU só teria servido para o conforto dos agentes da cultura da morte. Contudo, chegou a hora de reconhecer que a Santa Sé na ONU tem sido muitas vezes como o menino holandês que impediu a inundação mantendo seu dedo no dique. Chegou a hora de atender ao chamado urgente do Santo Padre para as próprias famílias se tornarem " 'protagonistas' da chamada 'política familiar' e assumir a responsabilidade de transformar a sociedade". O Pontifício Conselho para a Família reiterou recentemente este chamado, lembrando-nos que "a família não está abandonada (...) As famílias devem associar-se, organizar-se e construir a política familiar (...) através de processos democráticos de participação, a família deve assegurar que o Estado reconheça sua autonomia, seus direitos e seu valor como a comunidade resiliente do futuro".

Como mãe e avó, sei que não é fácil para os membros da família responder a este apelo. Cada um de nós terá que discernir através da oração como deverá contribuir. Mas o Papa João Paulo II nos lembra que há uma coisa que as famílias podem fazer, independente de sua situação na vida. Elas podem esforçar-se para "oferecer a todos o testemunho de uma dedicação generosa e desinteressada pelos problemas sociais, mediante a 'opção preferencial' pelos pobres e marginalizados". Além disso, exorta as famílias cristãs "a engajarem-se ativamente a todos os níveis" em associações que trabalhem para o bem comum e o bem da família.

No que concerne à arena internacional, isto nos traz de volta a uma das questões que propus no inicio destas considerações: como saber o que ajuda ou prejudica a família? Devemos lembrar-nos de que a Igreja tem meditado profundamente esta questão, à luz das Escrituras e de sua própria experiência como "perita em humanidade". Os frutos dessa meditação estão ao nosso alcance no rico armazém do ensinamento social católico. Como coloca o Padre Richard John Neuhaus: "Nenhum Estado, nenhum partido, nenhuma instituição acadêmica, nenhuma outra comunidade de fé tem proposto uma visão tão abrangente e tão sólida da família no mundo moderno. O ensinamento da Igreja é uma proposta corajosa pela justiça familiar, que pode informar integralmente o pensamento e a ação públicos, desde a política de bem-estar e as práticas empregaticias ao direito dos pais de escolherem a educação que desejam para seus filhos".

Embora o pensamento social católico não traga respostas a questões políticas específicas, ele informa nossas indagações com seus três grandes princípios "S": subjetividade, solidariedade e subsidiariedade.

Acontece, por razões que mencionei antes, que esses três princípios estão presentes nos grandes documentos sobre direitos humanos do século XX: as Declarações de Bogotá e da ONU, e numerosas constituições da pós-guerra. Uma teoria de subjetividade está implícita em sua visão da pessoa humana, que evita a falsa oposição entre indivíduo e família, rejeitando tanto o individualismo radical quanto a total subordinação dos indivíduos ao grupo. A solidariedade está explícita nas muitas provisões que tratam da justiça social e no reconhecimento de que o indivíduo não pode florescer fora das famílias e comunidades. A subsidiariedade está implícita no princípio da proteção à família, que está agora sob assalto. Esse princípio significa que o governo não deve substituir a família, mas sim ajudar as famílias a fazerem o que fazem melhor. Todos esses princípios precisam ser recuperados e vivificados para uma nova geração que esqueceu o que os homens e mulheres que sobreviveram ao desastre econômico e à guerra mundial aprenderam através de amargas experiências.

Os redatores das grandes cartas de pós-guerra tinham um senso agudo da importância da família não só para seu próprio bem, mas também para o bem de seu ambicioso projeto moderno de direitos humanos. Afinal, como se pode promover a liberdade, a dignidade e a solidariedade humanas, sem um número suficiente de homens e mulheres capazes e dispostos a sustentar esses exigentes princípios? E onde hão de ser formados esses homens e mulheres, se não, antes de tudo, em famílias sólidas e saudáveis? Resulta que a sociedade deve atender às necessidades imediatas das pessoas inseridas em famílias desfeitas ou disfuncionais, mas deve fazê-lo sem abalar as frágeis estruturas familiares que, a longo prazo, são as mais favoráveis ao desenvolvimento humano.

As implicações em relação ao nosso tema -as organizações internacionais e a família- são claras: o que pode ser feito pela família não deve ser assumido por estruturas sociais maiores; o que pode ser feito pelas estruturas intermediárias da sociedade civil não deve passar para o governo; o que pode ser feito em um nível mais baixo do governo não deve ser assumido por um nível mais alto -e a fortiori não por organizações internacionais distantes-. Quando se aproxima o 50o aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, nós, membros de famílias, podemos ajudar a recuperar sua visão original favorável à família, que corresponde tão de perto aos ensinamentos sociais católicos.

Caras irmãs e irmãos em Cristo, resolvamos então responder ao apelo do Santo Padre para nos tornarmos protagonistas da política familiar. Não desprezemos a política -pois, como ensinaram Aristóteles e São Tomás de Aquino, ela é a grande arte de ordenar, em conjunto, as nossas vidas para o bem comum-. Recuperemos sim a política das mãos daqueles que a pervertem visando propósitos malignos. Lutemos pelo direito de determinar democraticamente as condições sob as quais vivemos, trabalhamos e criamos nossas famílias. Resistamos aos especialistas auto-nomeados que fingem saber melhor do que nós como criar nossos filhos. Tomemos de volta a educação de nossos filhos das mãos dos secularistas proselitistas. Resgatemos a nossa arte, música e literatura dos mercenários do hedonismo. Não busquemos matar a ONU de fome, mas procuremos colocá-la numa dieta correta. Empenhemo-nos em assumir qualquer papel que pudermos na construção da civilização da vida, resistindo à cultura da morte. Como os filhos dos hebreus antigos, podemos faze-lo confiantes em que, ao obedecer o mandamento de "escolher a vida", o Senhor mesmo "marcha à nossa frente; ele estará conosco e nunca nos deixará nem nos abandonará" (Deuteronômio, 31).