A
família e a sociedade: Aa
Organizações Internacionais e a Defesa
da Família
Professora Mary
Ann Glendon
Faculdade de Direito da Universidade de Harvard
Presidente da Delegação da Santa Sé na Conferência
de Pequim sobre a Mulher
INTRODUÇÃO
Quanto mais refletimos
sobre o tópico "organizações internacionais
e a defesa da família", mais perplexidades
parecem acumular-se numa única palavrinha "e".
Que ligações há, ou deveria haver, entre os mais
antigos agrupamentos sociais e enormes organizações
modernas que são tão distantes da vida diária ?
A Declaração Universal dos Direitos Humanos das
ONU proclama que a família merece a proteção da
sociedade e do Estado. Mas não há qualquer evidência
no pano de fundo histórico da Declaração de que
os seus redatores esperavam que a própria ONU desempenhasse
um papel relevante na proteção da família -exceto
naquilo de que as famílias poderiam beneficiar-se
das atividades humanitárias de agências tais como
a Organização Mundial da Saúde e o Fundo das ONU
para a Infância. Agora que as ONU e suas agências
especializadas tornaram-se burocracias em expansão,
simbioticamente entrelaçadas com grandes associações
internacionais de lobby, ainda não está nada claro
como instituições desse nível podem melhor atender
às famílias. De fato, as atuais atividades de muitas
organizações internacionais frequentemente levam-nos
a pensar se a família precisa ser defendida por
elas ou protegida contra elas !
O que está fora de
discussão é que, no mundo de hoje, cada vez mais
famílias estão sendo afetadas, para o bem ou para
o mal, pelas operações de vários tipos de agentes
internacionais remotos -desde multinacionais até
órgãos supranacionais (mundiais como a ONU e o Banco
Mundial, ou regionais como a Organização dos Estados
Americanos e a União Européia), sem falar da vasta
gama de organizações não governamentais (um termo
que inclui grupos tão diferentes na sua aproximação
à família como a Federação Internacional de Planejamento
Familiar e a Igreja Católica).
Os efeitos das organizações
internacionais sobre as famílias são às vezes diretos
e intencionais -como acontece com os diversos serviços
prestados pela Igreja através de suas 300.000 organizações
educacionais, de saúde e ajuda, servindo principalmente
as famílias mais pobres no mundo. Frequentemente,
entretanto, a vida da família é eventualmente afetada
por atividades multinacionais dirigidas a outros
fins -como quando uma companhia transfere suas operações,
criando empregos em um país e destruindo-os em outro.
Quando organizações de controle de população pretendem
atuar sobre a família, tipicamente agem de modo
indireto, buscando influenciar agências nacionais
e internacionais ou grupos privados de serviço social
que estão em contato direto com famílias. A minúscula
conjunção "e" no meu título, portanto,
cobre uma rede de relacionamentos extremamente complexa,
alguns benéficos às famílias, alguns danosos, e
alguns cujos efeitos são mistos, ou difíceis de
discernir.
O que mais gostaríamos
de saber sobre tudo isso, é claro, é como ampliar
os benefícios e ao mesmo tempo reduzir os danos?
No momento, ainda é muito limitado o nosso conhecimento
sobre como todas essas organizações internacionais
realmente afetam a vida da família. Portanto, o
que eu gostaria de focalizar hoje são as atividades
relativas à família de um único grupo de organizações:
a ONU e suas afiliadas. Especificamente, desejo
chamar atenção para uma tendência surpreendente
que está tomando vulto enquanto se aproxima o 50o
aniversário da Declaração Universal dos Direitos
do Homem das ONU. Essa transformação é nada menos
do que um multifacetado assalto a diversos princípios
fundamentais consagrados na Declaração, inclusive
a afirmação de que a família é a unidade social
básica, e que ela merece proteção. Embora estes
ataques tragam as bandeiras de vários movimentos
de liberação, sugerirei que eles também representam
propostas para formas de controle social sem precedentes.
Finalmente, oferecerei algumas sugestões baseadas
no ensinamento social católico sobre como podemos
reconhecer e combater essas tentativas de voltar
o projeto dos direitos humanos contra a família.
I. A VISÃO DA DECLARAÇÃO
DE 1948:
A FAMÍLIA ENQUANTO
OBJETO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
A primeira manifestação
importante de interesse pela família por uma organização
internacional ocorreu em 1948 quando foi emitida
a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem em Bogotá, Colômbia. Esse documento notável
foi uma das principais influências nas disposições
relativas à família da Declaração Universal dos
Direitos do Homem das ONU, que foi aprovada em Paris,
mais tarde no mesmo ano. Lendo hoje esses dois documentos,
não se pode deixar de notar a intensa presença das
referências à família. Ambas as declarações destacam
que a família é a unidade fundamental da sociedade;
salientam que todos têm o direito de casar-se e
estabelecer família; que o lar é inviolável; que
o trabalhador tem direito a um padrão de vida aceitável
para si próprio e sua família; e que a família em
geral, e a maternidade e a infância em particular,
são merecedoras da proteção da sociedade e do Estado.
A Declaração da ONU dispõe, adicionalmente, sobre
a igualdade dos esposos, e sobre o direito dos pais
de dirigir e escolher a formação dos seus filhos.
Vale à pena refletir
sobre por que os redatores desses documentos de
direitos humanos do após-guerra decidiram incluir
a família como objeto de proteção. Cartas mais antigas,
como o "Bill of Rights" americano e a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão francesa,
não mencionavam absolutamente o assunto. A explicação
parece ser que os redatores das declarações de pós-guerra
usaram, até certo ponto, constituições nacionais
como modelos. No que concerne às famílias, há grandes
semelhanças no modo como o tema é abordado nas declarações
e nas várias constituições de países da Europa continental
e América Latina.
Mas isso nos leva precisamente
a uma pergunta anterior. Por que esses países acrescentaram
a proteção à família às suas listas de direitos
políticos e civis tradicionais? Essa transformação
pode ser atribuída primeiramente à influência dos
partidos Sociais Cristãos e Democratas Cristãos,
cujas políticas sobre família por sua vez foram
inspiradas pelas encíclicas sociais da Igreja Católica.
Embora ninguém tenha chamado atenção para isso na
ocasião, um conjunto comum de idéias passou assim
dos ensinamentos sociais cristãos, por via da política
normal, para a lei nacional, e eventualmente encontrou
seu caminho até as Declarações de Bogotá e da ONU.
A recepção dessas idéias no processo de redação
na ONU foi possivelmente facilitada pelo fato de
católicos proeminentes, particularmente o filósofo
Jacques Maritain e o diplomata libanês Charles Malik,
estarem entre os principais arquitetos do projeto
de direitos humanos da ONU.
Outra importante ligação
entre as Declarações de 1948 e certas constituições
nacionais reside na maneira como tratam da família.
As duas declarações internacionais pertencem, em
forma e em espírito, a um conjunto de instrumentos
relativos aos direitos da pós-guerra que não são,
filosoficamente, nem libertários nem coletivistas.
São baseados antes num conjunto comum de afirmações
sobre o homem e a sociedade que poderiam ser chamadas
de dignitaristas ou personalistas. As declarações
de Bogotá e da ONU indicam numa linguagem quase
idêntica que todos os homens e mulheres nascem livres
e iguais em dignidade e direitos; que o ser humano
é dotado de razão e consciência, e que todos devem
agir entre si num espírito de fraternidade. Ambos
os documentos tratam o portador de direitos individuais,
não como mônade auto-suficiente, mas como pessoa
inserida em relacionamentos comunitários e familiares.
A declaração da ONU, por exemplo, indica que cada
um tem deveres para com a "comunidade, único
lugar onde é possível o desenvolvimento livre e
completo da própria personalidade".
Quanto ao problema
que nos envolve hoje, é interessante notar que a
história das declarações de 1948 silencia sobre
como suas considerações relativas à família deveriam
ser levadas a efeito. Tudo indica que os redatores
consideravam a proteção da família como uma tarefa
que devia ser cumprida por instituições mais próximas
das próprias famílias. O princípio de subsidiariedade
parece implícito no Artigo 16 da Declaração da ONU,
que estabelece: "A família ... merece a proteção
da sociedade [bem como] do Estado".
Para além de afirmar um pequeno núcleo de princípios
fundamentais que as instituições públicas e privadas
estariam chamadas a observar, o envolvimento da
ONU, em seus primeiros anos, com as famílias ficou
basicamente limitado a prover assistência humanitária.
Entretanto, com o passar
do tempo, a ONU tornou-se uma burocracia complexa,
empregando milhares de funcionários internacionais.
Suas agências especializadas multiplicaram-se e
estenderam seus alcances. Alguns dos grupos mais
novos da ONU, como o Fundo para a População e o
Comitê para a Situação da Mulher, pretenderam gerenciar
a família mais do que assisti-la. Conforme a burocracia
da ONU cresceu e expandiu-se, atraiu grupos de interesse
desejosos de influenciar suas atividades -criando
relações estreitas de trabalho com esses grupos-.
Infelizmente, alguns desses grupos internacionais
de lobby desejavam proteger a família tanto quanto
lobos desejariam proteger cordeiros. O assalto à
família começou assim nos bastidores, muito antes
de vir a público.
II. O ASSALTO À FAMÍLIA:
A FAMÍLIA ENQUANTO OBSTÁCULO
Para compreender porque
e como o princípio da proteção à família passou
a ser atacado na ONU, é conveniente considerar uma
série de eventos importantes que aconteceram em
1995. No começo desse ano, o Secretariado da ONU
para o Ano Internacional da Família publicou um
folheto dizendo que : "O princípio básico da
organização social são os direitos humanos dos indivíduos,
que foram estabelecidos em instrumentos internacionais
dos direitos humanos".
Essa idéia parece bastante
inocente, mas somente até quando se considera o
modo como ela se encaixa na Declaração de 1948,
que estabelece que a família é a unidade básica
da sociedade. O Secretariado da ONU previu essa
pergunta. É verdade, admitiram eles, que "vários
documentos sobre direitos humanos" referem-se
à família como a unidade social básica, garantindo
a sua proteção e assistência, mas "o poder
da família é e deve ser limitado pelos direitos
humanos básicos dos seus membros individuais. A
proteção e assistência dispensadas à família devem
salvaguardar esses direitos".
Ninguém pode razoavelmente
colocar objeções a essa proposição se ela apenas
significa que não há direitos que sejam ilimitados,
mesmo aqueles relativos à família. Mas, junto com
outras apreciações na ONU, particularmente aquela
que erosionava sutilmente a autoridade moral dos
pais na Convenção de 1989 sobre os Direitos da Criança,
a orientação de 1995 parecia fazer parte de um esforço
deliberado para colocar os direitos individuais
em oposição às relações familiares, para inserir
o Estado entre as crianças e os pais, e para minar
o status da família como objeto de proteção dos
direitos humanos. Essa interpretação ganhou plausibilidade
em novembro de 1995, quando o Comitê da ONU sobre
os Direitos da Criança atacou ferozmente a Santa
Sé por suas reservas quanto a esses aspectos da
Convenção dos Direitos da Criança. Considerando
que todos esses documentos foram publicados pela
própria ONU, acontecia que a raposa estava no galinheiro.
Todas as dúvidas relativas
a essa avaliação foram eliminadas pela Conferência
da ONU sobre a Mulher que ocorreu em Pequim em setembro
daquele ano. Quando li pela primeira vez o rascunho
do documento da conferência preparado pelo Comitê
da ONU sobre a Situação da Mulher, mal pude acreditar
no que estava vendo. Como tinha sido possível que
o programa de ação proposto para a conferência da
mulher praticamente não mencionasse o matrimônio,
a maternidade, ou a vida em família em lugar algum
de suas 149 páginas? E que quando o matrimônio e
a vida em família -e até a religião- eram mencionados,
apresentavam-se basicamente a partir de um enfoque
negativo -como fontes de opressão ou obstáculos
ao progresso da mulher? A explicação é que o Comitê
da ONU sobre a Situação da Mulher havia se tornado
em grande parte ferramenta de grupos de interesses
particulares que promoviam um tipo de feminismo
já ultrapassado nos próprios países onde se originara.
O rascunho de Pequim repetiu assim muitos dos desgastados
"clichés" do feminismo de 1970 -um feminismo
que havia alienado a grande maioria das mulheres,
através de sua desatenção para os problemas da vida
real no trabalho e na família, mediante a sua hostilidade
aos homens e sua infeliz indiferença quanto ao bem
estar das crianças.
Nas negociações prévias
à conferência, esses ataques feministas da velha
guarda contra a família foram combinados com esforços
para promover uma noção mais recente: a idéia de
que a família e a identidade sexual são apenas categorias
arbitrárias, construídas socialmente, e infinitamente
maleáveis. Na própria Conferência de Pequim, uma
coalizão liderada pela União Européia, continuou
esse esforço duplo para "desconstruir"
a família e remover qualquer referência positiva
ao matrimônio, à maternidade, à família, aos direitos
dos pais e à religião.
Aquelas delegadas pareciam
desconhecer que a linguagem que tentavam remover
dos documentos de Pequim são centrais na maioria
de suas próprias constituições nacionais! Foi um
panorama triste ver mulheres da França, Irlanda,
Itália, Alemanha e Espanha tripudiando sobre os
direitos humanos que foram ganhos pelos sacrifícios
de seus próprios pais e mães! E mais triste ainda
ver delegadas de muitos países em desenvolvimento
permanecerem em silêncio enquanto matérias de interesse
vital para seus próprios concidadãos eram subordinadas
às agendas dos grupos de interesse do primeiro mundo.
Um estranho a essas
controvérsias ficaria imaginando por que alguém
poderia desejar prejudicar o princípio da proteção
à família, justamente numa época em que as famílias
estão submetidas a tensões excepcionais em todas
as partes do mundo. As respostas padronizadas que
se escutam a esta questão são montadas em termos
de liberdade individual, igualdade entre os sexos
e compaixão para com as vítimas de abuso marital
e infantil. Ouvimos que não se pode permitir que
a família se interponha no caminho dos direitos
das mulheres e das crianças. E que, de qualquer
forma, a família foi definida tão rigidamente que
deu injusta preferência ao casamento heterossexual,
em detrimento da co-habitação sem matrimônio ou
das uniões homossexuais.
Mas acredito que seria
um engano ver estes assaltos ao princípio da proteção
à família meramente como esforços mal dirigidos
para promover a liberdade e a igualdade. Eles são
também ligados ao poder e aos interesses, embora
seja difícil dizer até que ponto. Muito da liderança
e do apoio financeiro para essas iniciativas provêm
de pessoas que estão interessadas não nos direitos
das mulheres, ou das crianças, ou dos homossexuais,
mas na preservação dos próprios privilégios. Procuram
não a liberação geral, mas o controle social nas
mãos deles.
Seus motivos menos
óbvios podem ser vislumbrados nos estranhos direitos
novos que propõem -direitos que frequentemente se
tornam facas de dois gumes, "direito para mim,
dever para você"-. Os chamados "direitos
reprodutivos", por exemplo, podem representar
autonomia para algumas mulheres, mas também constituem
uma cobertura conveniente para esforços de controle
sobre o tamanho das famílias pobres por quaisquer
meios. O "direito de morrer" proposto
pode satisfazer os desejos de algumas pessoas abastadas,
de se sentirem "no controle" até o fim,
mas não se tenha dúvida de que pressagia o dever
de morrer para aqueles que estão doentes, abandonados,
e incapazes de pagar pelos cuidados médicos. Quanto
aos "direitos sexuais", não parece fantacioso
vê-los como versão moderna do "pão e circo",
uma oferta de liberdade sexual ilimitada como distração
para a perda da genuína liberdade e negação da justiça
econômica.
Os propósitos mais
indesejáveis dos promotores das iniciativas internacionais
anti-família podem ser percebidos no triângulo de
ferro de exclusão que estão montando em seus próprios
países natais: estão excluindo a vida nova pelo
aborto e esterilização; trancando a porta contra
os estrangeiros através de políticas restritivas
de imigração; e voltando as costas aos pobres através
de cortes nos programas de assistência à família.
No que tange ao auxílio externo, darão milhões para
"serviços reprodutivos", mas tostões para
nutrição materna e infantil, água pura, ou cuidados
primários com a saúde. Como os fariseus no Evangelhos
segundo Mateus (23), "eles preparam fardos
pesados para os ombros dos outros homens, mas não
movem um dedo para ajudá-los". Quando olham
para as crianças dos pobres, vêm somente uma ameaça
ao meio ambiente, um presságio de agitação social,
e uma ameaça ao seu próprio nível de consumismo.
A principal fonte de problemas do mundo, a seu ver,
é a superpopulação, e a sua principal solução é
eliminar os pobres.
É esta agenda vergonhosa
que liga silenciosamente o movimento do direito
ao aborto com os movimentos anti-imigração nos países
desenvolvidos e com certos segmentos dos movimentos
ambientalistas. É essa agenda que se esconde atrás
das saias dos movimentos femininos, mas não tem
qualquer aprecio pelas mulheres. É essa agenda que
conseguiu apoio em um número grande demais de agências
da ONU, e insinuou-se na política externa de um
número excessivo de países desenvolvidos. É essa
agenda que demasiados delegados trouxeram para as
recentes conferências da ONU.
Num sentido, os atuais
ataques à família representam uma nova versão de
uma estória que é tão velha quanto a própria política.
Os grupos que desejam minar a ordem estabelecida,
desde a Revolução francesa aos marxistas do século
XX, tipicamente atacaram as famílias, que sustentam
os valores da velha ordem. E os tiranos sempre souberam
que quanto mais os indivíduos forem desligados das
famílias e de outros grupos mediadores, tanto mais
facilmente poderão ser subjugados. O movimento para
"desconstruir" a família e legitimar estilos
de vida alternativos tem assim implicações sobre
a liberdade humana muito diferentes das imaginadas
pelas feministas e ativistas homossexuais, suficientemente
inocentes para acreditar que estariam melhor sem
a família.
Entretanto, o que torna
a nossa situação atual historicamente nova é que
o ataque à família é difuso. Não pode ser identificado
com uma nação em particular, ou uma região, ou uma
única ideologia. Suas diversas manifestações têm
pouco em comum -fora a promoção dos interesses de
uma classe burocrática-gerencial-terapêutica animada
quase exclusivamente pelo desejo de consolidar a
prosperidade sem precedentes que teve na segunda
metade do século XX. Como colocou recentemente um
administrador do Programa de Desenvolvimento da
ONU: "Uma elite global emergente, basicamente
urbana e interligada de diversos modos, possui grande
poder e riqueza, enquanto mais da metade da humanidade
esta abandonada"
Essa nova classe é
realmente internacional. Seus membros -os operários
do conhecimento, muito móveis, semi-educados, que
povoam agências do governo, empresas, universidades,
profissões, meios de comunicação de massa e agências
de serviço social de toda nação- cada vez têm mais
em comum entre si do que com os pobres de suas próprias
sociedades. De fato o Relatório sobre o Desenvolvimento
Humano da ONU de 1996, indica que esta disparidade
cresce cada vez mais ao ponto de que os aquinhoados
e os pobres vivem cada vez mais em mundos separados.
O mundo nunca viu antes
nada parecido com esta força amorfa, não-estatal,
que pretende o controle social a partir de uma classe
que procura manter, não exercer, a sua posição.
Seu movimento não tem cabeça, mas tem muitos braços
que se movem mais ou menos na mesma direção. Essa
direção comum nasce menos de conspiração do que
de um paralelismo inconsciente. Não são propriamente
contra a família, mas determinados a não
deixar que a família, a religião ou qualquer outra
instituição se coloque no caminho daquilo que desejam.
É fácil ver porque
grupos de interesse da nova classe, bem financiados,
acorrem às organizações internacionais como a ONU
e a Corte Européia para os Direitos Humanos. Em
seus países de origem, desdenham os processos políticos
normais, que iriam expor suas agendas ao julgamento
de seus concidadãos. Antes, procuram influenciar
agências administrativas, ou obter sentenças inapeláveis
de cortes constitucionais não eleitas. Portanto,
não deve gerar surpresa que tenham assumido, rapidamente,
novas oportunidades para operarem longe da observação
pública e da responsabilidade democrática. Organizações
como a Federação Internacional para o Planejamento
Familiar (IPPF) têm feito todos os esforços para
transformar as conferências da ONU em praças de
fabricação "off-shore" para fazer com
que a agenda do controle populacional se torne um
"padrão internacional", que então poderia
ser usado para influenciar não só as agências internacionais,
mas também políticas locais e programas de ajuda
externa. Desse modo, uma agenda controversa pode
afetar as vidas de milhões de pessoas, sem jamais
ter sido submetida à prova das urnas.
Em resumo, os anos
entre 1948 e 1995 assistiram ao crescimento de diversos
movimentos que visavam tratar a família (e a religião)
como obstáculos aos direitos humanos, em vez de
objeto da proteção dos direitos humanos. Ao final
de 1995, parecia que os princípios a favor da família
da Declaração Universal de 1948, para além de seu
reconhecimento, corriam sério perigo de ser destorcidos
ou suprimidos. Isso nos traz a seguinte questão:
III. O QUE FAZER ?
Muitos homens e mulheres
de boa vontade, desgostosos com esses desenvolvimentos
e desencorajados em geral pela incapacidade da ONU
para cumprir sua promessa inicial, acreditam que
os grupos pro-família não deveriam ter mais nada
a ver com a ONU. Mas há várias razões teológicas
e de prudência pelas quais essa opção é problemática
para os católicos.
Em primeiro lugar,
a Cristandade Católica exige que sejamos ativos
no mundo. Somos chamados, cada um com seus dons
diferentes, a ser o sal da terra, o fermento do
pão social, trabalhadores na vinha para a vinda
do reino.
Em segundo lugar, tal
como a Igreja já reconheceu muitas vezes, a ONU,
apesar dos seus defeitos, desperdícios e fracassos,
tem feito muito bem, especialmente nos países pobres,
e oferece muita esperança num mundo onde as nações
enfrentam muitos desafios que atravessam as fronteiras
nacionais. Na Familiaris Consortio, o Santo
Padre disse às famílias que o papel social e político
da família foi "alargado de um modo inteiramente
novo" por causa da "dimensão mundial de
vários problemas sociais". Esse papel, disse,
envolve agora "cooperação para uma nova ordem
internacional", participando "no crescimento
autenticamente humano da sociedade e das suas instituições,
quer mantendo de vários modos associações que especificamente
se dedicam aos problemas de ordem internacional".
Em terceiro lugar,
tal como se evidenciou na atividade da Santa Sé
na ONU, mesmo umas poucas vozes podem fazer diferença,
quando falam a verdade e chamam o bem e o mal pelo
nome. Muito da melhor linguagem sobre justiça social
em documentos recentes da ONU está lá porque a Santa
Sé a propôs ou a defendeu. Graças à Santa Sé, a
ONU continua comprometida com o princípio de que
o aborto nunca deverá ser proposto como meio de
controle da natalidade. Mesmo em Pequim, onde era
uma minoria pequena, a Santa Sé foi capaz de salvar
artigos sobre a proteção à família pondo-os em destaque.
Quando a União Européia lutou contra todas as referências
positivas à família, à religião e à autoridade dos
pais, enviamos uma nota de imprensa a todos os maiores
jornais europeus perguntando por que os representantes
da Europa estavam tomando posições contrárias às
suas próprias constituições e às políticas dos seus
governos relativas à família. Perguntamos se esses
delegados representavam realmente a política oficial
ou a opinião pública de seus países. Em 24 horas,
começaram a ser levantadas questões nos Parlamentos
europeus sobre o que estavam fazendo realmente seus
delegados em Pequim. Antes de passar mais um dia,
os delegados europeus recuaram de suas posições
e os textos contestados foram salvos.
No fim das conferência
de Pequim, muita gente boa e religiosa ainda considerava
que o documento da conferência era tão cheio de
defeitos que a Santa Sé deveria rejeitá-lo inteiramente.
Pediram que nossa delegação se retirasse da conferência.
Mas o Papa João Paulo II instruiu-nos a não tomar
o caminho da retirada. Falando desde o próprio núcleo
da tradição teológica católica, disse: "Aceitem
o que é bom no documento, e denunciem vigorosamente
o que é falso ou pernicioso".
O tempo já demonstrou
a sabedoria dessa orientação. A Conferência do Habitat
de Istanbul, realizada um ano depois de Pequim,
presenciou uma derrota fragorosa da coalizão anti-família.
Como um repórter colocou: "Apesar de muita
pressão, golpes e chantagem aberta, os países em
desenvolvimento recusaram-se a curvar-se à pressão
ocidental favorável à 'saúde reprodutiva' e à definição
ambígua da 'família'. Em vez disso, os representantes
do G-77 recolheram votos para: reafirmar a importância
dos direitos dos pais; garantir o respeito aos valores
religiosos e éticos dos Estados membros; reconhecer
que a família (e não a palavra-código 'famílias')
é a unidade básica da sociedade; e cancelar todas
as referências à 'saúde reprodutiva' salvo uma cujo
fraseado impedia que fosse usada para impor o aborto
no mundo em desenvolvimento".
Até mesmo o Secretariado
da ONU para o Ano da Família parece ter experimentado
uma mudança no coração, ou pelo menos nas aparências.
Em 1997 publicou um relatório de tom muito diferente
do folheto de 1995, que citei anteriormente. Em
seu sumário oficial de todas as provisões relativas
à família das últimas conferências da ONU, o Secretariado
destaca principalmente as provisões que sobreviveram
devido aos esforços da Santa Sé! .
Parece indiscutível
a conclusão que a retirada da Santa Sé da ONU só
teria servido para o conforto dos agentes da cultura
da morte. Contudo, chegou a hora de reconhecer que
a Santa Sé na ONU tem sido muitas vezes como o menino
holandês que impediu a inundação mantendo seu dedo
no dique. Chegou a hora de atender ao chamado urgente
do Santo Padre para as próprias famílias se tornarem
" 'protagonistas' da chamada 'política familiar'
e assumir a responsabilidade de transformar a sociedade".
O Pontifício Conselho para a Família reiterou recentemente
este chamado, lembrando-nos que "a família
não está abandonada (...) As famílias devem associar-se,
organizar-se e construir a política familiar
(...) através de processos democráticos de participação,
a família deve assegurar que o Estado reconheça
sua autonomia, seus direitos e seu valor como a
comunidade resiliente do futuro".
Como mãe e avó, sei
que não é fácil para os membros da família responder
a este apelo. Cada um de nós terá que discernir
através da oração como deverá contribuir. Mas o
Papa João Paulo II nos lembra que há uma coisa que
as famílias podem fazer, independente de sua situação
na vida. Elas podem esforçar-se para "oferecer
a todos o testemunho de uma dedicação generosa e
desinteressada pelos problemas sociais, mediante
a 'opção preferencial' pelos pobres e marginalizados".
Além disso, exorta as famílias cristãs "a engajarem-se
ativamente a todos os níveis" em associações
que trabalhem para o bem comum e o bem da família.
No que concerne à arena
internacional, isto nos traz de volta a uma das
questões que propus no inicio destas considerações:
como saber o que ajuda ou prejudica a família? Devemos
lembrar-nos de que a Igreja tem meditado profundamente
esta questão, à luz das Escrituras e de sua própria
experiência como "perita em humanidade".
Os frutos dessa meditação estão ao nosso alcance
no rico armazém do ensinamento social católico.
Como coloca o Padre Richard John Neuhaus: "Nenhum
Estado, nenhum partido, nenhuma instituição acadêmica,
nenhuma outra comunidade de fé tem proposto uma
visão tão abrangente e tão sólida da família no
mundo moderno. O ensinamento da Igreja é uma proposta
corajosa pela justiça familiar, que pode informar
integralmente o pensamento e a ação públicos, desde
a política de bem-estar e as práticas empregaticias
ao direito dos pais de escolherem a educação que
desejam para seus filhos".
Embora o pensamento
social católico não traga respostas a questões políticas
específicas, ele informa nossas indagações com seus
três grandes princípios "S": subjetividade,
solidariedade e subsidiariedade.
Acontece, por razões
que mencionei antes, que esses três princípios estão
presentes nos grandes documentos sobre direitos
humanos do século XX: as Declarações de Bogotá e
da ONU, e numerosas constituições da pós-guerra.
Uma teoria de subjetividade está implícita
em sua visão da pessoa humana, que evita a falsa
oposição entre indivíduo e família, rejeitando tanto
o individualismo radical quanto a total subordinação
dos indivíduos ao grupo. A solidariedade
está explícita nas muitas provisões que tratam da
justiça social e no reconhecimento de que o indivíduo
não pode florescer fora das famílias e comunidades.
A subsidiariedade está implícita no princípio
da proteção à família, que está agora sob assalto.
Esse princípio significa que o governo não deve
substituir a família, mas sim ajudar as famílias
a fazerem o que fazem melhor. Todos esses princípios
precisam ser recuperados e vivificados para uma
nova geração que esqueceu o que os homens e mulheres
que sobreviveram ao desastre econômico e à guerra
mundial aprenderam através de amargas experiências.
Os redatores das grandes
cartas de pós-guerra tinham um senso agudo da importância
da família não só para seu próprio bem, mas também
para o bem de seu ambicioso projeto moderno de direitos
humanos. Afinal, como se pode promover a liberdade,
a dignidade e a solidariedade humanas, sem um número
suficiente de homens e mulheres capazes e dispostos
a sustentar esses exigentes princípios? E onde hão
de ser formados esses homens e mulheres, se não,
antes de tudo, em famílias sólidas e saudáveis?
Resulta que a sociedade deve atender às necessidades
imediatas das pessoas inseridas em famílias desfeitas
ou disfuncionais, mas deve fazê-lo sem abalar as
frágeis estruturas familiares que, a longo prazo,
são as mais favoráveis ao desenvolvimento humano.
As implicações em relação
ao nosso tema -as organizações internacionais e
a família- são claras: o que pode ser feito pela
família não deve ser assumido por estruturas sociais
maiores; o que pode ser feito pelas estruturas intermediárias
da sociedade civil não deve passar para o governo;
o que pode ser feito em um nível mais baixo do governo
não deve ser assumido por um nível mais alto -e
a fortiori não por organizações internacionais distantes-.
Quando se aproxima o 50o aniversário
da Declaração Universal dos Direitos Humanos, nós,
membros de famílias, podemos ajudar a recuperar
sua visão original favorável à família, que corresponde
tão de perto aos ensinamentos sociais católicos.
Caras irmãs e irmãos
em Cristo, resolvamos então responder ao apelo do
Santo Padre para nos tornarmos protagonistas da
política familiar. Não desprezemos a política -pois,
como ensinaram Aristóteles e São Tomás de Aquino,
ela é a grande arte de ordenar, em conjunto, as
nossas vidas para o bem comum-. Recuperemos sim
a política das mãos daqueles que a pervertem visando
propósitos malignos. Lutemos pelo direito de determinar
democraticamente as condições sob as quais
vivemos, trabalhamos e criamos nossas famílias.
Resistamos aos especialistas auto-nomeados que fingem
saber melhor do que nós como criar nossos filhos.
Tomemos de volta a educação de nossos filhos das
mãos dos secularistas proselitistas. Resgatemos
a nossa arte, música e literatura dos mercenários
do hedonismo. Não busquemos matar a ONU de fome,
mas procuremos colocá-la numa dieta correta. Empenhemo-nos
em assumir qualquer papel que pudermos na construção
da civilização da vida, resistindo à cultura da
morte. Como os filhos dos hebreus antigos, podemos
faze-lo confiantes em que, ao obedecer o mandamento
de "escolher a vida", o Senhor mesmo "marcha
à nossa frente; ele estará conosco e nunca nos deixará
nem nos abandonará" (Deuteronômio, 31).